quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

As termas romanas de Ebora Liberalitas Julia

O município romano de Ebora Liberalitas Julia, a actual cidade de Évora, revela-se nos planos histórico-arqueológico uma fonte inesgotável de investigação. Se muito foi destruído, modificado e reedificado ao longo dos séculos, mercê das sucessivas guerras e dos governos que lhe proporcionaram uma dimensão cultural tão heterogénea, bastante ainda ficou a comprovar a razão histórica do deslumbramento dos humanistas quinhentistas portugueses e estrangeiros e o actual estatuto de Património da Humanidade justamente reconhecido pela UNESCO, em 1986.
Nos anos oitenta do século passado visitámos, durante dezenas de fins-de-semana consecutivos e no espaço de dois anos, pela mão do nosso eterno amigo Túlio Espanca, quase todos os monumentos de Évora e dos arredores; por outro lado, também lhe proporcionámos a companhia necessária, em Beja, aquando dos seus estudos para o “Inventário Artístico do Distrito de Beja”, publicado em 1992. Portanto, é natural que a cidade de Évora nos seduza e que nos sintamos bem onde fomos e somos estimados.
Agradecemos desde já ao nosso professor[1] e arqueólogo, Dr. Panagiotis Sarantopoulos, e ao serviço do Núcleo de Documentação Histórico-Arqueológica da Câmara Municipal de Évora, o apoio concedido para a prossecução deste estudo diverso sobre as termas romanas da cidade. Em 2003, durante uma visita de estudo, orientada pelo nosso docente, levantámos algumas objecções à coerência ab initio do programa construtivo das termas. Baseámo-nos em determinados vestígios estruturais que identificámos como estranhos às termas, talvez pertença de um edifício anterior e luxuoso, no género de uma muito pequena Domus Áurea de Nero (ver ilustração de um dos compartimentos, semelhante ao de Évora). Dessa visita resultaram, com a anuência do nosso docente, as hipóteses de estudo que iremos expor.
De um modo geral é nas edificações dos banhos romanos que se encontram as soluções mais inovadoras na concepção do espaço arquitectónico dado que não estavam sujeitas às normas rígidas dos outros espaços político-religiosos do Império. Então, quando se trata de banhos públicos, como os que se disponibilizam nas termas de uma cidade - simultaneamente destinados ao divertimento, ao descanso, aos negócios e à higiene - a funcionalidade, a racionalidade, a simetria e a versatilidade das salas e espaços livres, ajardinados, do empreendimento rivalizam com a melhores obras de engenharia e de arquitectura. Sendo complexa a tecnologia necessária para erguer umas termas e para as abastecer continuamente de água, é, contudo, em grande parte na manutenção dos esgotos, das condutas de ar quente e da(s) fornalha(s) que reside o seu bom funcionamento.
No final de 1987 realizaram-se escavações arqueológicas na parte mais antiga, quinhentista, do edifício da Câmara Municipal de Évora, sendo identificadas estruturas pertencentes às termas públicas da cidade. O município assentara a administração do seu concelho na casa senhorial de Nuno Martins da Silveira, Escrivão da Puridade, ascendente dos Condes de Sortelha, erguida em terrenos doados, em 1450, por D. Afonso V (CORREIA: 1988, 313). A intervenção arqueológica, sob a responsabilidade de Panagiotis Sarantopoulos[2] e Virgílio Hipólito Correia[3], limitou-se, na altura, à escavação de uma sala circular com abóbada nervurada e estrelada, anteriormente utilizada como arquivo municipal e, no século XIX, como sala de reuniões. Em linhas gerais (insuficientes por certo, mas o espaço e o tempo são curtos), segundo estes arqueólogos, a sala circular com um diâmetro um pouco superior a 9 m integra um tanque construído em tijolo, com cerca de 5 m de diâmetro, dotado de três degraus, atingindo 1,15 m de profundidade. Era revestido a placas de mármore. O hipocaustum (espaço coberto, pelo pavimento que acedia ao tanque, para circulação de ar quente) tem a forma de uma coroa circular com cerca de 1,5 m de largura, encontrando-se muito danificadas as suspensurae (pequenas arcadas sobre pilares em terracota). As paredes da sala são construídas na parte inferior, correspondendo, grosso modo, à altura do pavimento do tanque, em opus incertum (aparelho de blocos de pedra de dimensão vária e, até, algum tijolo, apresentando alinhamento irregular) e, na parte superior, essencialmente em tijolo. “Só nas esquinas das exedras[4] o aparelho de granito se eleva, formando um cunhal bem aparelhado” (CORREIA: 1988, 314). Logo, todo este enquadramento, da sala circular com o tanque, configura uma das áreas de banhos das termas a que os romanos chamavam laconicum (destinada à sauna, banhos de vapor). São muito importantes as considerações tecidas por Virgílio H. Correia (1988: 316-317) em torno do espólio exumado – mármores trabalhados [fragmentos de cornija e não frisos], terra sigillata, etc. – e do mistério das exedras, ainda entulhadas e em parte sob o reboco, que Sarantopoulos (2000: 281) define como quatro absidae semi-circulares (nichos). Porém, dos estudos preliminares que ambos realizaram, entre 1987 e 1988, e daqueles que Sarantopoulos desenvolveu até ao presente[5], emerge precisamente a necessidade da continuação dos trabalhos de maneira a reformular ou a corroborar alguns dos resultados que até agora têm sido apresentados sob a forma de “hipóteses de trabalho” (SARANTOPOULOS: 2000, 282).
Vamos, nesse caso, com o apoio das plantas e desenhos perspécticos, apresentar sucintamente os dados que analisámos.
Na planta concebida pela ARTOP, em 1993 (SARANTOPOULOS: 1994, Est.III), adaptada ao nosso estudo, podemos observar parte do interior do edifício da Câmara Municipal de Évora onde se realizaram as escavações arqueológicas. A, B, C e D, designam, respectivamente, na planta original, o laconicum na sala circular; o praefurneum onde se queimaria a lenha para alimentar de ar quente, por exemplo, o hipocaustum do laconicum; a entrada do laconicum e uma outra sala longa de cabeceira semicircular. Acrescentámos-lhe as letras E, F, todas as G(uês) e, nos desenhos de nossa autoria, mais um T e um H.
Em E, no lado direito do corredor de comunicação entre a fornalha (praefurneum) e a sala do laconicum, portanto, de B para A ou T, é visível a base de granito de uma soleira de porta ainda com o buraco para encaixar o seu eixo e permitir-lhe o giro. Estará in situ, como parece, devido à perfeição do aparelho dessa zona, ou será elemento reaproveitado? Não devia haver portas no interior das fornalhas… e, esse elemento dissonante, poderá ter correspondência simétrica no lado oposto. Ainda na área da fornalha, B, designamos por F uma poderosa estrutura, de blocos graníticos (quase tudo é granito, como a rocha mãe) muito bem aparelhados e alguns almofadados ou rusticados, sobre o que parece ser a parte superior da base de um podium (base mais larga provida de um esbarro, neste caso com ligeiro sulco). Esta estrutura de opus quadratum , bem alinhada, parece ter sido seccionada para receber os diversos túneis de terracota que permitiam o acesso humano e a circulação do ar através das suspensurae do complexo termal. Temos a percepção de que algum edifício grandioso foi construído naquele lugar, bem antes das termas o terem reaproveitado, até as grandes lajes alinhadas no pavimento, sob a letra E, são indício de uma utilização diversa da fornalha. Seria necessário tanto dispêndio numa obra oculta, somente iluminada pelas brasas? Mas, é na sala circular, em A e T, a do laconicum, que melhor se observa, julgamos nós, o reaproveitamento de um espaço de funcionalidade diferente do das termas.
A sala circular possui - estruturados e abertos desde o nível do seu pavimento, situado no interior da coroa circular onde se desenvolveu o hipocaustum do laconicum - quatro vãos de cantaria bem aparelhada (as ditas exedras), G1, G2, G3 e G4, quiçá interrompidos ou mais elevados ainda, pelas obras do laconicum e de outras que ao longo de centenas de anos reutilizaram esse espaço. Entre os vãos G1 e G4, e G4 e G3, situam-se os corredores posteriormente abertos para circulação do ar quente, os quais corromperam a unidade e simetria da sala. Dos vãos G3 e G4 foram retirados ou desviados alguns dos blocos graníticos dos seus pés direitos, enquanto G1 e G2 se conservam intactos, pelo menos nos primeiros 1,6 ou 1,7 m de altura. Nas ilustrações podemos observar, em G1, um vão de cantaria bem aparelhada, provavelmente de uma comunicação com o exterior, abrindo numa das faces do hipotético octógono que harmonizava o edifício. Na planta que elaborámos enfatizamos esta configuração octogonal, cuja existência não está provada, mas que não é descabida, e, além dos quatros vãos que poderiam ter sido, no todo ou em parte, passagens entre as diferentes dependências da domus de algum senhor romano, sinalizamos com H o contraforte adossado e oportuno face à fragilidade provocada pelo vão G1 nesse lado octogonal da construção. Tal como na fornalha, também aqui, no laconicum, este trabalho de cantaria afecto aos quatro vãos é estranho ao funcionamento das termas. Para quê construir caro e demorado se fosse para esconder? Onde estava a utilidade prática, estética e funcional, de tal obra? É na impossibilidade de uma resposta coerente a estas questões que vemos parte do edifício que antecedeu as termas. Possivelmente a cornija decorada que se encontrou nas escavações também lhe pertenceu.
Uma das próximas tarefas, entre tantas outras, a realizar pelos investigadores da cidade romana de Évora, é a de descobrir, se é que existiram antes das que agora são conhecidas, o primeiro local onde funcionaram as termas da cidade. Há outro aspecto relativo ao posicionamento destas termas que não faz muito sentido. Estão muito em cima das portas romanas de Sta. Isabel ou, então, o que parece mais provável, pelo aspecto desconjuntado dos arcos e dos elementos díspares dos seus pés direitos, as referidas portas já vêm trasladadas de outro local. Se a própria muralha romana recuou e há até troços dela que mais parecem de feição muçulmana, não se devem, pois, estranhar estas transformações e reutilizações inerentes à evolução da urbe eborense.
Em resumo, perante os vestígios analisados, admitimos que de facto houve uma “casa senhorial”, uma Domus, do século I ou, até, anterior, antes da sua integração nas termas romanas de Évora. Logo, as futuras escavações arqueológicas e a análise do seu espólio, mesmo daquele que já se estudou, deverão ter em consideração esta nova conjectura.

Cf. BORRELA, Leonel - “Iconografia Pacense – As termas romanas de Ebora Liberalitas Júlia” in Diário do Alentejo de 13 de Abril de 2007.


[1] Um professor nunca o deixa de ser, especialmente quando une humanidade e probidade à sua profissão.
[2] SARANTOPOULOS, Panagiotis – “Os banhos públicos Thermae da Liberalitas Ivlia Ebora – Notícia da sua descoberta nos actuais paços do concelho de Évora”. In A Cidade de Évora , Évora: CME, 1986-1987.
[3] CORREIA, Virgílio Hipólito – “As termas romanas de Évora. Notícia da sua identificação”. In Hvmanitas, Vol.XXXIX-XL, Coimbra: F.L.U.C.-I.E.C., 1987-1988. pp.312-317.
[4] Vão aberto numa parede, semelhante a um nicho ou a uma pequena divisão no género de um absidíolo.

[5] SARANTOPOULOS, Panagiotis – “Os banhos públicos da Liberalitas Iulia Ebora. Algumas notas sobre o seu estudo”. In Trabalhos de Antropologia e Etnologia (Actas do 1º Congresso de Arqueologia Peninsular). Porto: Soc. Port. de Antrop. E Etnol., 1994. pp.273-286. Est. I-VIII; S., P. – “A piscina dos banhos públicos de Évora – Notícia da sua identificação no corpo novo do edifício dos actuais paços do concelho de Évora”. In A Cidade de Évora. Évora: CME, 1994-1995. Série II, Nº1, pp. 157-170; S., P. – “Thermae de Ebora Liberalitas Iulia”. In Termas romanas en el Occidente del Império (II Colóquio Internacional de Arqueologia en Gijón). Gijón: Ayuntamiento de Gijón, 2000. pp.281-282; S., P. – “Percursos em Ebora Liberalitas Iulia”. In Imagens e mensagens – Escultura romana do museu de Évora. IPM-Museu de Évora, 2005.

1 comentário:

  1. Não é irónico que em milhares de visitas não haja um único comentário a esta hipótese de estudo?

    ResponderEliminar